E o hospital de campanha?
A China levantou um hospital de campanha em 10 dias. Mas, ok, nós não somos a China. Recife, no momento em que você lê esse texto, já tem 7 hospitais de campanha. Um deles, com 60 leitos de retaguarda, foi estabelecido em 20 dias, com o custo de R$ 1,2 milhão (mais R$ 1,5 milhão mensal).
O hospital de campanha de Feira de Santana, 40 dias após a requisição administrativa do imóvel, ainda não está pronto. Podemos então comparar Feira de Santana com Recife? Dizer que o nosso hospital de Campanha, que ainda não está pronto, que deveria ter 50 leitos de internamento clínico e 10 leitos de UTI, custando 8 milhões aos cofres públicos, foi barato ou caro? Não podemos. Sabe porquê? Porque ainda não temos todas as informações necessárias para fazer um julgamento correto. Mas já sabemos algumas coisas. Vem com a gente.
Para entender onde estamos e quais informações são necessárias, você precisa entender um pouco a linha do tempo da contratação da empresa que vai gerir o hospital de campanha de Feira de Santana.
Hospital Mater Dei
No dia 23 de Abril, saiu no Diário Oficial (ANO VI — EDIÇÃO1290) a requisição administrativa do imóvel situado à Avenida João Durval Carneiro, nº 3786, CASEB, no Município de Feira de Santana –BA, bem como dos bens móveis nele existentes, para a utilização como Hospital de Campanha, destinado ao enfrentamento da Calamidade Pública de Saúde decorrente do Coronavírus (COVID-19), no âmbito do Município. Esse imóvel é o Hospital Mater Dei, que estava inativo há 6 meses.
Queremos saber: Porque não usar o estádio Jóia da Princesa ou qualquer outro espaço para montagem? Quais outras opções foram consideradas?
Convocação das empresas
No dia seguinte, 24 de Abril, uma convocação foi publicada no Diário Oficial (ANO VI – EDIÇÃO 1292 — EXTRA), convocando empresas ou organizações da Sociedade Civil interessadas a apresentarem cotações de preços. O critério de julgamento seria Técnica e Preço. A abertura das cotações seria em 29 de Abril. Qualquer empresa que quisesse se candidatar deveria ler o Termo de Referência, onde consta todas as informações sobre a licitação em questão.
O Termo de Referência
O Termo de Referência é um dos documentos mais importantes de uma contratação pública, pois nele estão todos os detalhes: quais os produtos são esperados, o que é responsabilidade do poder público e da contratada, e muito mais. O texto do Diário Oficial indicava que o Termo de Referência estaria disponível no site www.feiradesantana.ba.gov.br. Abrimos o site da Prefeitura de Feira de Santana para tentar encontrar o Termo de Referência e não conseguimos.
Dizer que o Termo está disponível em um site abrangente como o da Prefeitura não é um indicativo de uma instituição que quer tornar fácil para as pessoas encontrarem esse e outros documentos. Se você, leitor, quiser fazer o teste pode começar entrando no site da Prefeitura e tentando encontrar. Nós te esperamos.
Conseguiu?
O Termo de Referência está na página de licitações, dentro do Portal da Transparência, no mês de Maio. A página de licitações não possui uma busca, então para descobrir isso você teria que entrar em todas as páginas, mês a mês, ler todas as licitações da página e então, caso esteja com sorte, encontrar. Mas não se preocupe, temos o Termo de Referência aqui (a segunda versão, a primeira não conseguimos encontrar).
No dia 28 de Abril, foi publicada no Diário Oficial uma retificação do termo de referência com correções do cronograma e das responsabilidades da contratada.
Suspensão do processo
No dia 29 de Abril (segundo a retificação do Termo de Referência), dia em que deveria receber os envelopes das interessadas com as suas propostas, o processo foi suspenso.
O quê?
Tudo bem, acontece. Deve ter um bom motivo. Vamos olhar o que diz o Diário Oficial ANO VI - EDIÇÃO 1298:
Nada. Nenhuma justificativa da suspensão.
Poucas informações são encontradas ao procurar na Internet a respeito. Encontramos a notícia da suspensão apenas no Bahia Notícias. Ao buscar por “suspensão” na busca de notícias do site da prefeitura de Feira de Santana também não encontramos nenhuma notícia a respeito.
Nova convocação e impugnação
Uma nova convocação foi feita, com data de abertura das cotações para 5 de Maio de 2020. Mas no dia 1º de Maio foi publicado no Diário Oficial a impugnação. Uma impugnação ocorre quando alguém contesta o edital. Essa contestação pode ser por algum erro, falta de informação ou desconfiança. Seria uma espécie de suspensão temporária e podendo chegar a um cancelamento. Qualquer pessoa pode impugnar, basta se manifestar.
Nesse caso, a impugnante foi a Associação de Proteção à Maternidade e a Infância de Castro Alves (APMI). Segundo o Diário Oficial, um parecer de nº 582/PGM/2020, foi emitido pela Procuradoria Geral do Município dizendo não reconhecer o motivo da impugnação.
Queremos saber: porque o edital foi impugnado? Onde podemos acessar o parecer?
Nós não conseguimos encontrar esse parecer. A última publicação da Procuradoria Geral do Município no Diário Oficial é de 26 de Março de 2020 (acessado em 2 de Junho de 2020). O motivo da impugnação também não foi divulgado.
Queremos saber: onde podemos consultar os pareceres emitidos pela Procuradoria Geral do Município?
Novo edital
Depois da impugnação, um novo Termo de Referência foi publicado na página de licitações.
No dia 05 de Maio as empresas ou organizações da Sociedade Civil devem ter ido ao local marcado para submeter suas propostas. Em nenhum lugar do site da Prefeitura foi possível encontrar quais empresas submeteram propostas e quais foram essas propostas.
Queremos saber: quais empresas submeteram propostas? Quais foram os custos submetidos por elas (planilha de custos — Anexo F)?
Empresa contratada por dispensa de licitação
Saiu então, no dia 12 de Maio, no Diário Oficial: a Associação de Proteção a Maternidade e Infância Ubaíra, de nome social S3 Estratégias e Soluções em Saúde, foi a empresa contratada. Números da dispensa e do processo administrativo para acompanhamento:
DISPENSA DE LICITAÇÃO Nº 386–2020–11D
PROCESSO ADMINISTRATIVO Nº 513–2020
O contrato tem um prazo de 180 dias e um custo de R$ 8.343.008,21 (oito milhões trezentos e quarenta e três mil oito reais e vinte e um centavos). No mesmo dia 12, uma republicação por incorreção aconteceu, com a correção do prazo para 90 dias.
CONTRATO N° 329–2020–11C
Processo Administrativo Nº 513–2020
Cansou? Nós também. Mas, calma lá, chegamos na parte mais importante. A minuta de contrato é uma espécie de rascunho e o contrato é a versão final do acordo feito entre a Prefeitura e a contratada, com todo o detalhamento necessário para entrega do produto ou serviço. Atualmente o Portal da Transparência de Feira de Santana só exibe os contratos até 08 de Abril. Não conseguimos encontrar onde está a minuta ou o contrato.
Queremos saber: Onde está a minuta de contrato e o contrato celebrado entre o ente público e a empresa? Onde podemos acessar a ata do processo de escolha?
Sem o contrato não é possível entender os gastos envolvidos e os serviços prestados. A partir dele, também poderemos entender o que tem sido feito no local e, inclusive, o motivo da demora na entrega.
Esse é um infográfico da linha do tempo do hospital de campanha em Feira, resumindo todos os acontecimentos:
Mãos na obra!
Falamos muito a respeito do processo mas agora que existe um local, uma empresa contratada, o termo de referência e o valor, podemos tentar entender um pouco mais do hospital de campanha de Feira de Santana. Já que não temos o contrato ainda, vamos passar por algumas perguntas que surgiram ao ler o Termo de Referência.
Quem paga por essas reformas?
No termo de referência, podemos ver a responsabilidade de cada parte (empresa contratada e poder público) na gestão do Hospital de Campanha (anexo A, página 28):
Uma das responsabilidades do poder público é a Manutenção predial e das estruturas físicas dos equipamentos. No Termo de Referência não existem detalhes a respeito do que isso significa. Apenas na minuta e no contrato teríamos acesso a essas informações.
Mas sabemos que existe uma reforma acontecendo no local. O site da prefeitura dá mais detalhes a respeito da obra:
A unidade hospitalar vai funcionar no Hospital Mater Dei, localizada na avenida João Durval Carneiro, maternidade particular que estava desativada há seis meses. O Governo do prefeito Colbert Martins Filho está acelerando as obras de reforma e adaptação e a manutenção abrange lavanderia, cozinha, reparo de equipamentos, sanitários, área externa e preparar os leitos com equipamentos necessários.
Além disso, temos relatos de muitas benfeitorias no hospital, como asfaltamento, construção e reparos no telhado, construção da calçada, podas e paisagismo, implantação de grande frontal (com guarita e portão de acesso), reparos na pavimentação do estacionamento, adequações e instalações na rede elétrica, em paredes e telhado (em partes que estavam inacabadas do prédio), rampa de carros (viaturas/ambulâncias). Veja as imagens do antes e depois:
Nos pergutamos: será que não teria um lugar em Feira de Santana onde essa estrutura já existisse e esse processo pudesse ser concluído com maior celeridade? Mas também:
Queremos saber: O que tem sido feito, os custos e quem está assumindo?
Equipamentos
No anexo B do Termo de Referência encontramos uma grade mínima de medicamentos e no anexo C uma lista de equipamentos para compor os 10 leitos de UTI.
Um dos equipamentos de responsabilidade da contratada é Ventilador eletrônico microprocessador adulto/infantil com traqueias, os respiradores. Já que os respiradores são de responsabilidade da contratada, por qual motivo a prefeitura está adquirindo respiradores e o governo do estado está emprestando ao município?
No anexo F encontramos um modelo de planilha de custos porém essa planilha de custos ainda não está disponível de maneira pública. Ou seja: o município está gastando 8 milhões de reais para a gestão do hospital de campanha mas não sabemos exatamente em que.
Queremos saber: quais os custos da gestão do Hospital de Campanha? Em que estão sendo gastos os 8 milhões de reais?
A transparência em Feira é como essa placa
Os problemas não param por aí. A pandemia escancara como a transparência é encarada pelo poder executivo de Feira de Santana. Além de todas as informações que não temos, documentos não são divulgados, pedidos de informação não respondidos. É muito esforço para que o mínimo seja feito: cumprir a lei.
O que essa placa tem a ver com isso? Tudo.
A lei municipal nº 1172, de 10 de abril de 1989, diz:
Art. 1º Ficam as empresas construtoras obrigadas a colocar nas placas alusivas às obras contratadas pelo Município, o valor do contrato, nome da empresa construtora, origem dos recursos, datas do início e término das obras. (Redação dada pela Lei nº 1697/1993)
Nessa placa tem apenas o nome da obra e o pedido para que a população acredite cegamente em todas as decisões, sem a possibilidade de participar, entender ou questionar como o seu dinheiro é aplicado no município. Não tem o valor do contrato ou sequer a empresa contratada.
Nessa placa também tem há certeza da falta de fiscalização e de impunidade no descumprimento não apenas dessa lei mas também da LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011, conhecida como Lei de Acesso à Informação:
Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:
I — observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;
II — divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações;
III — utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação;
IV — fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública;
V — desenvolvimento do controle social da administração pública.
E mais:
Art. 5º É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão.
Nos perguntamos: até quando o Poder Executivo vai continuar ignorando a lei? Até quando seremos privados das informações que temos por direito? Até quando a Câmara de Vereadores vai continuar ignorando seu papel de fiscalizar não apenas as obras mas também como o Poder Executivo tem lidado com a transparência na cidade?
Como ajudar?
O objetivo do Dados Abertos de Feira é não apenas tornar os dados municipais acessíveis a todos mas também ajudar no desenvolvimento da consciência cidadã e no controle social. Pedimos a sua ajuda para ter as nossas perguntas respondidas. Vamos divulgar todas as respostas assim que as recebermos.
Você pode ajudar cobrando ao poder público nas suas redes e fazendo um pedido de acesso à informação (veja como fazer no final desse texto). Você pode também compartilhar esse texto e incentivar discussões a respeito desse tema com seus familiares e amigos. Todas as redes sociais e e-mail para contato estão no www.dadosabertosdefeira.com.br.
O Dados Abertos de Feira é um projeto voluntário que busca fomentar transparência no município de Feira de Santana. Esse texto é fruto de um trabalho desenvolvido a muitas mãos. Muito obrigado a todos os envolvidos! ❤
Como fazer um Pedido de Informação
Para fazer um pedido de informação ao poder executivo basta acessar a página de contato do Portal de Transparência:
Lá você deve inserir seus dados e escrever sobre o seu pedido. Um pedido de informação deve ser claro e, quanto mais específico, mais fácil de ser respondido. Após enviar você deve receber um email de confirmação. O órgão público tem até 20 dias para responder, podendo ser prorrogado por mais 10. Lembrando que a prorrogação precisa ser comunicada. Caso o órgão não responda, você deve denunciá-lo ao Ministério Público (feiradesantana@mpba.mp.br).
Abaixo o nosso pedido de informação sobre o hospital de campanha:
Requisitamos acesso às informações listadas abaixo, referentes ao Hospital de Campanha de Feira de Santana.
Para facilitar a compreensão das informações fornecidas, solicitamos que cada item seja respondido separadamente, indicando o número a que se refere.
1. Porque não usar o estádio Jóia da Princesa ou qualquer outro espaço para montagem? Quais outras opções foram consideradas?
2. Porque o edital foi impugnado?
3. Onde podemos acessar o parecer nº 582/PGM/2020?
4. Quais empresas submeteram propostas?
5. Quais foram os custos submetidos por elas (planilha de custos — Anexo F)?
6. Onde está a minuta de contrato e o contrato celebrado entre o ente público e a empresa? Onde podemos acessar a ata do processo de escolha?
7. Uma das responsabilidades do poder público é a Manutenção predial e das estruturas físicas dos equipamentos. O que exatamente foi definido e está sendo feito na área externa e interna do prédio? Considerando o poder público e empresa contratada, quem está responsável por cada um dos itens?
8. Quais os custos da gestão do Hospital de Campanha? Em que são gastos os 8 milhões de reais?
9. Porque o hospital de campanha não tem uma placa com informações de o valor do contrato, nome da empresa construtora, origem dos recursos, datas do início e término das obras, com previsto pela lei municipal nº 1172, de 10 de abril de 1989 (https://leismunicipais.com.br/a/ba/f/feira-de-santana/lei-ordinaria/1989/118/1172/lei-ordinaria-n-1172-1989-autoriza-o-chefe-do-poder-executivo-a-colocar-nas-placas-alusivas-as-obras-o-valor-do-contrato-nome-da-empresa-construtora-e-a-origem-dos-recursos?q=obras)
Você é livre para enviar esse pedido para a Prefeitura também. Não esqueça de nos contar caso tenha seu pedido respondido. A Lei de Acesso à Informação prevê que o órgão público deve responder a qualquer pergunta feita pelo cidadão, sem restrições durante a pandemia (STF confirma decisão que impede restrições na Lei de Acesso à Informação).